Cinema

Incêndios: Ninguém está alheio ao passado

I. Incêndios

O que Incêndios (2010), de Denis Villeneuve, nos ensina sobre como lidamos com traumas coletivos e individuais é difícil de dizer. Talvez comece com a ideia de que algumas coisas precisam ser vistas — ou, mais precisamente, precisam ser conhecidas. Não é suficiente apenas ouvir alguém contar. Existe uma coisa profundamente humana em querer entender o que, de fato, aconteceu. Não basta nos dizer, precisamos ver, mesmo que isso nos desfigure. Meio aterrorizante isso também, não acha? O modo como os eventos de um passado distante se arrastam até o presente e, de algum modo, continuam a acontecer. Não se trata só de assistir, mas de carregar esse peso. O que vemos, o que descobrimos, o que ouvimos — é isso que nos define. E, de algum modo, tudo isso nos atravessa.

Antes de mais nada, minha visão sobre Incêndios não vem de algum tipo de experiência pessoal com guerra ou violência. Eu (felizmente) não tenho esse tipo de memória crua para me guiar. Nunca vivi, nem testemunhei a tragédia em seus piores termos. No entanto, como qualquer um de nós, convivo com a violência da história, do dia a dia, da política, das relações humanas. E é isso que Incêndios discute também: a guerra, o conflito, o sofrimento, tudo isso são legados. Eles não pertencem a uma geração só, mas atravessam todas as gerações. Simon e Jeanne, ao tentar desvendar o passado de sua mãe, são forçados a encarar o que não querem ver, o que prefeririam esquecer. Só que, como em tudo na vida, é impossível ficar alheio a um passado que insiste em ressurgir.

Talvez eu tenha começado a entender isso com o tempo. O horror que o filme provoca não é o de exibir cenas brutais e vívidas, mas o de nos obrigar a olhar para o que está enterrado no passado, nas cicatrizes das famílias ou de uma nação. A história de Nawal não é só dela, e a história de Simon e Jeanne não é só deles. Eles são personagens que vivem, de alguma forma, as tensões da nossa história coletiva, os ecos do que já aconteceu e o que ainda reverbera. Não se trata de uma busca por respostas fáceis, mas por entender o peso daquilo que nos foi dado sem que escolhêssemos.

Na verdade, acho que é isso o que Incêndios nos ensina, de maneira terrível: a violência não é apenas algo que acontece, mas algo que se transmite, que atravessa gerações, que se instaura nas memórias e nas decisões das pessoas. Não podemos fugir disso. Nem Simon, nem Jeanne. E nem nós, ao assistirmos à história.

II. Os Gêmeos

Eu me lembro que, assim que Incêndios terminou, me veio uma pergunta na cabeça: Por que Villeneuve fez esse filme? Histórias são contadas por muitos motivos, conscientes e inconscientes, e hoje em dia a razão de sua criação muitas vezes não é pessoal ou social, mas econômica. Estamos cercados por histórias o tempo todo, e algumas delas se tornam muito mais altas do que outras, a expressão reverberante de uma ideia criativa que explodiu há muito tempo. Estamos revestidos pela radiação do passado, e é isso que nos diz que o futuro está a caminho. Nós fomos mudados — estamos sendo mudados. Olhe para frente, não ao redor.

Mas às vezes, contamos histórias sobre o que pode ser perdido se não formos cuidadosos. Em Incêndios, Denis Villeneuve mergulha em uma narrativa sobre perda, identidade e as camadas ocultas que constroem quem somos. Os gêmeos Simon e Jeanne são duas figuras simultaneamente complementares e contraditórias, cujas jornadas refletem tanto suas dores individuais quanto alguns traumas coletivos que temos na humanidade, principalmente no que se trata de guerra. Mais do que isso, eles são personagens que representam a colisão entre o passado e o presente, moldados por segredos familiares e um legado de violência que não pediram para herdar.

Simon e Jeanne não começam como heróis. Simon, impulsivo e resistente às últimas vontades de sua mãe, Nawal, luta contra o peso da tarefa de entregar as cartas destinadas ao pai que acredita estar morto e a um irmão que ele nem sabe se existe. Jeanne, por outro lado, aceita a missão com determinação, mas percebe-se um certo entendimento por parte dela sobre onde essa jornada pode levá-la. Ambos carregam o desconforto de revisitar feridas antigas, uma representação de nossa própria relutância em enfrentar verdades dolorosas.

Os caminhos dos gêmeos, no entanto, são desenhados com a precisão de um contador de histórias que entende o poder da dualidade. Villeneuve é esse cara. Enquanto Jeanne busca suas respostas com lógica e paciência, Simon acaba sendo forçado a se juntar a ela, levando consigo toda a fúria e a descrença de alguém que teve o chão retirado sob os pés. Eles avançam juntos, mas de maneiras diferentes, cada um carregando partes de um quebra-cabeça que só faz sentido quando as peças se encontram no final.

Gosto de pensar que essa busca dos dois seja uma metáfora para a necessidade de reconciliação, não apenas com o passado pessoal, mas com as feridas históricas que moldam gerações. A revelação final do filme — devastadora — obriga os gêmeos a lidar com uma verdade que redefine tudo o que pensavam saber sobre si mesmos, sua mãe e suas próprias origens. Incêndios não é um conto de redenção fácil ou de encerramento pacífico. Aliás, o filme não se mostra pacífico em momento algum. Em vez disso, ele reconhece que algumas histórias, como as de Simon e Jeanne, não têm finais felizes no sentido convencional.

Eu volto à pergunta que me veio à cabeça ao finalizar o filme: Por que Villeneuve está contando essa história? Por que acompanhamos esses dois personagens atravessando territórios completamente devastados pela guerra atrás de segredos familiares? Acho que a resposta está na profundidade emocional de suas jornadas. Simon e Jeanne são muito mais do que personagens em busca de respostas. Eles são boa parte da humanidade, lutando para encontrar clareza em meio à escuridão e conexão em meio ao isolamento. É o reconhecimento de que os traumas que herdamos não são apenas nossos, mas fazem parte de um tecido coletivo muito maior. Simon e Jeanne não saem dessa jornada como vencedores ou conquistadores, mas sim como sobreviventes. E isso é suficiente.

Existe poder no cinema, e ele também reside nesse lugar: no espaço entre as decisões que tomamos e as histórias que herdamos, onde personagens como Simon e Jeanne nos oferecem a chance de olhar para os abismos de nossas próprias vidas. Mesmo nas circunstâncias mais desoladoras possíveis, sempre existe algo a ser descoberto — e enfrentado. E talvez seja isso que realmente define o que significa ser humano.

E, para além dos irmãos, está sua mãe. Nawal não é apenas uma mãe; ela é uma testemunha, uma sobrevivente e, por fim, um canal para que a verdade seja revelada.

III. Nawal

A história de Nawal é contada através dos olhos de seus filhos, cuja descoberta dos pedidos póstumos da mãe os obriga a mergulhar profundamente na vida dela e na história de uma região devastada pela guerra. Por meio da perspectiva dos gêmeos, a vida de Nawal emerge como um mosaico — cada peça revelando uma mulher moldada por sofrimentos inimagináveis e um desejo inabalável por reencontro. A busca pelo pai que nunca conheceram e por um irmão cuja existência desconheciam força Jeanne e Simon a enfrentarem Nawal não como a mãe cuidadora que sempre conheceram, mas como um ser humano complexo e falho.

Desde o momento em que vemos Nawal jovem, ela já é marcada pela sua rebeldia. Seu amor por um homem do “lado errado” de uma divisão religiosa a coloca em um caminho de exílio, violência e sobrevivência. Ela é uma mulher que se recusa a se submeter às barreiras impostas por sua comunidade, e essa recusa torna-se sua característica definidora. Porém, sua rebeldia tem um preço. O filho que ela dá à luz em segredo é arrancado de seus braços imediatamente após seu nascimento, e sua vida é consumida por uma busca incansável para recuperar o que foi tirado. Essa perda primordial a assombra em cada momento, guiando suas decisões e levando ao que se tornará sua revelação mais devastadora.

Através de Nawal, Incêndios explora o custo pessoal dos conflitos políticos e religiosos. Sua história se desenrola em meio a uma guerra civil, onde a linha entre lealdades e traições é finíssima, e a humanidade é testada em suas formas mais primitivas. Nesse meio, Nawal se torna ao mesmo tempo vítima e participante, forçada a tomar decisões cujos efeitos se espalham de maneiras que nem ela, nem o público, jamais poderiam prever. Em sua história, não há uma linha clara entre o certo e o errado, apenas sobrevivência e sacrifício.

Villeneuve mostra o mundo de Nawal com um realismo cru, e não poderia ser de outra forma. Suas experiências na prisão, sua participação em atos de resistência e seu confronto final com a figura que representa o capítulo mais sombrio de sua vida são mostrados com uma honestidade impressionante. No entanto, em meio a essa brutalidade, há momentos de profunda humanidade também — vislumbres da mulher que Nawal poderia ter sido se o mundo não fosse destruído pela guerra. Seu canto suave, as cartas para seus filhos e seu amor inabalável pelo filho perdido se mostram como sinais de uma força e uma ternura que se recusa a ser extinta. Coisa de mãe, talvez.

O silêncio de Nawal em seus últimos anos é tão alto quanto sua rebeldia na juventude. É um silêncio que não nasce da derrota, mas da compreensão do peso da verdade. Ela sabe que o legado de dor que carrega não pode ser simplesmente contado — ele deve ser descoberto. Ao incumbir seus filhos de desvendarem seu passado, ela os força a confrontar não apenas sua história, mas também seu próprio lugar dentro dela. Dessa forma, ela garante que eles não herdem apenas os traumas de sua linhagem, mas também a força necessária para enfrentá-los. Após sua morte, ela ensina a seus filhos a maior lição de suas vidas.

De muitas maneiras, Nawal representa esse cruzamento entre memória pessoal e coletiva. Sua vida é tanto uma tragédia individual quanto um reflexo dos horrores da guerra. Suas escolhas, embora profundamente pessoais, são moldadas pelas forças da história, da política e da cultura. Nawal não tem culpa disso, mas é por meio dela que Incêndios nos faz refletir sobre como o passado molda o presente e como as cicatrizes dos conflitos são transmitidas de geração em geração.

O grande plot twist — que une o pai e o irmão dos gêmeos em uma única e devastadora figura — é o ápice de uma vida marcada pela dor e pela resiliência e é quase insuportável em sua carga emocional. É um momento que não apenas destrói o entendimento que Jeanne e Simon têm de sua mãe, mas também de si mesmos. No entanto, nesse mesmo ato, há também um senso de encerramento. O silêncio de Nawal é quebrado, e seus filhos não recebem respostas fáceis, mas as ferramentas para construir sua própria compreensão de seu legado.

Nawal, uma mulher moldada por suas circunstâncias, mas nunca definida por elas. Sua história é de sobrevivência, de amor e perda, e da necessidade indestrutível de testemunhar a verdade. Obrigado, Nawal. Eu sinto que não foi em vão.

No final, Incêndios não te deixa com uma sensação de conclusão. Ele te deixa com perguntas—sobre família, identidade e as consequências da guerra. Ele te pede para pensar, para sentir, para lembrar. E esse talvez seja o maior presente que ele oferece: ele exige toda a sua atenção e a recompensa dez vezes mais.

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